"É a imagem na mente que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá forma à imagem." Colette

sábado, fevereiro 17, 2007

Seis e meia...



.... sexta-feira.
Toca o despertador e a gata me olha, boceja e volta a se encolher. Fico mais meia-hora.na cama. E perco a hora.
Banho rápido, correria, faço o café e esqueço a cafeteira ligada, sem tomar o café.
Logo na porta de casa já percebo que o trânsito está infernal. Chego atrasada, desisto de parar para tomar aquele café que deixei de tomar em casa. Subo imediatamente ao nono andar do hospital, encontro meu paciente bem.
- Quero comer, sussurra ele, que não tem mais voz para falar.
Mando o coitado para casa. Já era tempo...
Saio correndo escadas abaixo, até o estacionamento e penso que quando chegar no setor de cuidados paliativos poderei tomar aquele café. Ilusão minha.
Temos novos pacientes, tenho de fazer a história deles, rever medicações, conversar com familiares. E um paciente, o mais antigo da casa, que entrou em processo de morte. Acolho sua esposa, conversamos um pouco e ela se mostra resignada
- Doutora, eu entreguei nas mãos de deus, porque agora sei que não tem mais jeito, ela me diz chorosa. Não sei, penso comigo. Ele mais parece uma fênix, tudo é possível, inclusive estar de pé amanhã.
Subo para examinar os outros pacientes. Um deles, subitamente, deixou de fumar, está confuso, mas completamente sem dor. E com um apetite voraz e inexplicável. Abre seus grandes olhos azuis, me olha, sorri e fala palavras desconexas.
- Mas, parou de fumar, como assim?
- Não sei, doutora, de repente disse que não tinha mais vontade. Fumou o último ontem.
Mau sinal, penso eu.
[imagem: Hopper]
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Atualização em 18/02/2007:
Tudo calmo por lá. Parece que os maus espíritos que por lá rondavam já se foram. Nosso paciente moribundo partiu ontem à noitinha, junto de seus familiares, em tranqüilidade. Para minha surpresa, sua esposa estava calma e não chorava. Quando me viu, repetiu a frese:
- Doutora, eu havia entregado a vida dele a deus ontem, se lembra?
- Era o que estava faltando, respondo.
Sinto que nosso trabalho está melhorando a cada dia, pois os familiares se sentem cada vez mais acolhidos. É o trabalho em equipe, que está funcionando em harmonia.
Minha alma ficou inquieta. Sempre fica assim depois de uma partida. Esta foi especial. Era um paciente portador de doença da especialidade que eu exerço (fora cuidados paliativos, sou cirurgiã), ele estava conosco havia quase um ano e sua esposa já havia incorporado a casa como sua própria casa. Ela está extremamente acabada em relação ao primeiro dia que entrou ali, mas está resignada, pois já não suportava mais presenciar o sofrimento de seu marido.
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