"É a imagem na mente que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá forma à imagem." Colette

sexta-feira, março 31, 2006

Kim...

Hoje eu pude presenciar que lá tudo é possível...
Nossa nova paciente, uma senhora portadora de câncer avançado de pâncreas, já com encefalopatia devido à insuficiência hepática, queria muito despedir-se de seu cachorrinho, o Kim.
Permaneceu internada e em coma por vários dias, contra-indicando sua ida para lá. De repente, abriu os olhos, teve uma melhora súbita.
Imediatamente foi para lá transferida e sua filha foi buscar Kim, para que ela pudesse dizer adeus.
O cãozinho, um poodle branco, no começo ficou ressabiado. Mas depois, aproximou-se dela, que estava torporosa, e lhe lambeu a face.
Não sabemos se ela percebeu, mas para sua filha isso foi muito importante.
Tive que sair do quarto para chorar...
(imagem: Cartier-Bresson)
* * * * *
Atualização: a paciente partiu nesta madrugada de domingo.

sexta-feira, março 24, 2006

Depuis qu'Otar est parti


Lembrei-me deste filme hoje....
Um belo filme sobre a sabedoria dos idosos. A mãe,a filha e a neta, na Georgia. O filho médico resolve tentar a vida na França, Paris....como trabalhador de construção civil, e acaba morrendo ao cair de um andaime. Daí começa a história: a filha, com medo de contar para a mãe idosa, escreve cartas como se fosse ele, o filho. Mas quem as escreve é a neta. Até um dia que a mãe, a idosa, vende toda sua valiosa biblioteca de literatura francesa e compra três passagens para Paris, para visitar o filho. Imagine a situação...
Mas, quando filha e neta menos imaginam, a mãe idosa descobre que seu filho está morto e reage de forma inesperada. Lindo filme, linda a atriz octagenária que faz a Eka.
Tudo isto para dizer que, quando menos esperamos, um idoso reage de maneira contrária às nossas expectativas.
Nossa criança velha, de olhos azuis, nos diz hoje de tarde que sua mulher está partindo...

segunda-feira, março 20, 2006

Azul

Ele continua com aquele olhar perdido, muito azul, cor de mar. Parece uma criança velha, toda hora passeando pelo casarão. Às vezes vai para o outro lado da rua e fica espreitando de lá. Sai e compra pequenas coisas para dar para ela: uma fruta, um perfume barato, um copo colorido.

É duro, mas ela está partindo. Responde baixinho às solicitações, sorri com dificuldade, fecha os olhos e parece não querer mais abri-los.

Fará aniversário no próximo sábado...Mas creio que até lá já poderá ter ido embora.

(foto de Trastevere, Roma)

* * * * *

Atualização: a nossa querida paciente partiu neste domingo, 2/4, pela manhã. Serenamente...

domingo, março 19, 2006

50...

Ontem teve festa de aniversário de uma paciente nossa: 50 anos.
Nunca vi tanta gente naquela casa. Dizem que foi a segunda maior festa que aconteceu lá, só perdendo para o Natal.
Ela estava feliz, maquiada, de lenço e chapéu, entre suas irmãs, sobrinhas e filho. E entre todos nós...
(foto: Viviane)

sexta-feira, março 17, 2006

Calmaria....

Minha paciente melhorou.
Hoje estava sentada fora da cama, mais hidratada, com os cabelos cortadinhos, tranqüila e sem dor. Respirei aliviada...
Mas ela está numa curva descendente, piorando a cada dia.
* * *
Aquela outra paciente, a que estava fora de órbita, parece dar sinais de melhora.
Às vezes ela tem momentos de lucidez, quando fala normalmente com todos. Noutras chora, chama pelo pai, reza e se esconde. Sim, ela se esconde num gorro de lã que insiste em usar, apesar do calor que está fazendo.
Hoje ela me quis ao seu lado e lá fiquei por um bom tempo.
Tentei convencê-la a tomar sua medicação, pois tem jogado fora a maioria dos comprimidos que necessita ingerir. Ela me escutou, fez que compreendeu tudo que eu falava, porém, para minha surpresa, encerrou nossa conversa dizendo que não garantia nada que tomaria os remédios.
(imagem: Claude Monet)

quarta-feira, março 15, 2006

Resgates...

Nossa paciente resiste bravamente.

Parece que ela ainda não conseguiu fazer seus resgates.
* * *
Sinto por seu companheiro, o senhor de olhos azuis. Ele pressente que sua partida está próxima, porém foge do assunto toda vez que nos aproximamos. É necessário prepará-lo...
(imagem: Marc Chagall)

segunda-feira, março 13, 2006

Silêncio....

Estamos perdendo uma de nossas pacientes mais queridas, uma senhorinha pernambucana de 73 anos, com uma estória de vida dura...

Entrei em seu quarto hoje pela tarde, ela estava deitada em sua cama, quieta. Parecia dormindo....Mas, de repente abre seus olhos já sem brilho e me dá um sorriso triste, de quem já desistiu.

Passei a mão em seus cabelos grisalhos e lhe perguntei se queria alguma coisa. Agradeceu-me, como sempre, e sorriu. Depois mergulhou num sono tranqüilo...

Talvez estivesse sonhando com suas filhas adotivas, ou com seu amor de juventude (hoje um senhor confuso, assustado, de olhos azuis ...).

Desejo que ela parta em paz....

(foto de Cartier-Bresson)

domingo, março 12, 2006

Cora Coralina

"Não sei ...se a vida é curta
ou longa demais para nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove

E isso não é coisa do outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura...
Enquanto durar"

Era tudo o que eu queria ter escrito....

sexta-feira, março 10, 2006

Anjos e demônios....

-Doutora, não acha que ela está possuída? É impossível não responder a qualquer medicação feita até o momento. Não dormiu a noite passada, falou ininterruptamente coisas desconexas. Às vezes parece que está muito conectada com o que acontece ao seu redor. Noutras vezes, é de uma crueldade que é inconcebível num ser humano....

Pois então, a nossa paciente continua fora de órbita. E todos questionam se é somente por conta do estrago que seu tumor fez, ou se é algo que não podemos explicar. Sim, porque ela olha para os outros e diz exatamente qual é a doença e como será a evolução da mesma...

Estamos todos preocupados...

(Foto: Viviane)

quinta-feira, março 09, 2006

Lá tudo é possível...


Se o paciente quer ver seu cachorro, pode...
Já houve dois casos assim. Um deles, de um senhor idoso portador de câncer avançado...Quis ver seus dois cães, talvez para se despedir, não sei. Tem gente que gosta de bicho como se fosse gente. Sou suspeita para falar porque sou assim.

Bom, levaram seus dois cães até lá e ele ficou muito feliz. Dizem que morreu no dia seguinte, tranqüilo.

quarta-feira, março 08, 2006

Agora...


Arrumando minha estante, encontro livros que comprei na época que fazia minha residência médica e que nunca havia lido. Livros relacionados com o momento que estou vivendo hoje.

Engraçado. Tudo tem hora certa na vida da gente. Estes livros esperaram pacientemente na estante durante todos estes anos, para serem lidos somente agora...

Agora é o momento.

(Foto de Cartier Bresson)

sexta-feira, março 03, 2006

Entrando em órbita...


Depois de duas semanas falando as coisas mais bizarras, ela me reconheceu. Do jeito dela, mas me reconheceu...
- Doutora Simone! Você sumiu...por onde andava?
Ela insiste em me chamar assim e eu aceito. Está melhorando. Não vai se curar, mas está entrando em órbita novamente.

quinta-feira, março 02, 2006

Pra começar II


The light of the body is the eye.
If, therefore, thine eye be clear,
thy whole body shall be full of light.
But if thine eye be evil,
thy whole body shall be full of darkness.
(Matthew, VI, 22)





Tudo ainda é novidade para mim. Comecei a estudar e praticar Cuidados Paliativos faz bem pouco tempo. Porém, acredito que sempre fui uma paliativista. Talvez porque a minha especialidade cirúrgica aborde tanto as doenças malígnas, ou talvez porque estava escrito mesmo...

Tenho comprado muitos livros na Cultura e Livraria Francesa, todos abordando o tema Morte.

Ontem, ao telefonar para o serviço de atendimento ao cliente da Cultura, notei que a moça que me atendeu ficou desconfortável com a quantidade de livros comprada por mim falando sobre morte, ou sobre o morrer.

Diferentemente aconteceu na Livraria Francesa, onde fui pessoalmente buscar um dos livros de Philippe Ariès (L´homme devant la mort) e o original de Marie de Hennezel (La mort intime). Um dos vendedores, um rapaz jovem, conhecia tudo, simplesmente tudo sobre o tema. Havia estudado na época que seu pai teve câncer e, já num momento mais avançado, foi cuidado por paliativistas.

Conhecer este vendedor me deu um alívio muito grande, porque algumas pessoas já estão sabendo sobre cuidados paliativos. Muito engraçado, pois a grande maioria dos médicos não sabe nada a respeito, ou desdenha do nosso trabalho.

(imagem do filme Faraway, so close - Wim Wenders)

quarta-feira, março 01, 2006

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